sexta-feira, 11 de abril de 2014

A guerra dos Recalcados

Pra iniciar minha participação no blog, eu quero comentar o caso "Valesca Cabeçuda", sei que já fazem uns dias, mas o debate continua em fogo aberto nas redes, nas rodas de brejas, e afins.


Acho que a primeiro coisa a ser observada aí é a ação do meio sobre o fato. Nossa queridíssima imprensa não perde uma única oportunidade de capturar a atenção do grande público. Foi um prato cheio, né? E o tal professor que fez a questão comentou num vídeo que praticamente a intenção era essa mesmo, gerar polêmica, fazer barulho. O professor eu comento depois. No mais, não tem nada de novo nessa abordagem midiática, até a tática é a mesma, chamadas curtas, de alto impacto, às vezes com o texto dá a entender uma coisa, mas a matéria diz outra, enfim, aqueles velhos vícios que nunca foram eliminados da imprensa no geral (não é só Brasil não, viu, coxinha?).

Segundo, tem a imagem da Valesca Popozuda que está construída no imaginário dos públicos das redes. Um olhar minimamente detalhado revela coisas interessantes. Apesar de adorada por uma parcela bem específica do público (no geral, distintos das classes médias urbanas), outra parcela geralmente associa a funkstar a "música ruim", "música pobre", "não é música", "putaria", "palavrões", "obscenidade", "modinha", "lixo", "bosta", "vadia", "puta", e daí pra baixo. O interessante é que as críticas na sua maioria, além de negativas, são extremamente taxativas, a pessoa só sabe adjetivar, julgar, classificar, tudo se resume a más qualidades, não existem argumentos, não existem porquês, não há motivos, só "é assim, é assado, e pronto". Quando alguma faísca de argumentação acende, geralmente cai nesses mesmos adjetivos negativos pra justificar as posições frágeis em que se sustentam esses argumentos. Por exemplo, "o funk é ruim porque não é intelectual", essa é bem comum, geralmente tem várias derivações, vários exemplos são usados pra ilustrar essa confirmação ("ah, o Led Zeppelin falava da vida, dos sentimentos, de política!", mas também falava de sexo, drogas e muito rock'n'roll).


Depois, o embate. Ai é porrada pra todo o lado. Os anti-Valesca atacam com canhões de senso comum, tanques de tradicionalismo e perigosas bombas de preconceito. A estratégia é clara, perseguir e derrubar o inimigo com rajadas de argumentações, fotos, vídeos, e tudo mais que estiver disponível nesse grande arsenal da internet. Os pró-Valesca contra-atacam com metralhadoras de beijinhos no ombo, que na verdade são sua únicas grandes armas. O Facebook fica devastado. As rodas de breja fervem. O carro com som alto tocando funk no último volume acaba de passar. Vocês já sabem quem vence essa batalha, certo?

No fim, o que sobra é "a mesma velha opinião formada sobre tudo". E é nesse embate infinito que seguem os grupos sociais. Nesse mesmo embate nasceu o samba, o blues, o jazz, que sofreram ataques das elites dos seus respectivos países, não muito diferentes dos que o funk recebe hoje. O fato é que sempre foi assim, as putarias sempre estiveram presentes na arte no geral (popular e erudita). Me lembro sempre de uma marchinha de carnaval dos anos 20, cheia de ambiguidades bem cristãs:

"Homens: Na minha casa não racha lenha
Mulheres: Na minha racha, na minha racha
Homens: Na minha casa não falta água

Mulheres: Na minha abunda, na minha abunda
Mulheres: Na minha casa não se pica fumo
Homens: Na minha pica, na minha pica"


Esse é som um de muitos exemplos, acho que o mais antigo que eu conheço. O próprio cenário de bandas nacionais produziu diversas bandas que adoravam uma boa sacanagem nas suas letras. E, estranhamente, muitas dessas bandas são adoradas pela galera anti-Valesca. Vai entender...

Agora, no centro de tudo, está esse professor, que teve a coragem/audácia de levantar esse questionamento todo sobre o que é de fato ser intelectual, e o que isso tem a ver com a música a arte. No fundo, a arte não precisa ser intelectual, precisa ser uma expressão verdadeira, sincera, somente. A intelectualidade é uma das facetas da arte, e mais importante que isso é a intelectualidade que se pode produzir a partir dela. Por mais simples e banal que pareça a mensagem da Popozuda, se bem observado o contexto em que ela está (Quem É de fato a Valesca? De onde veio? Qual sua história?) percebe-se que não é tão simples assim. E por mais que a mensagem seja simples, o que ela evoca é bem maior: a sexualidade feminina, o poder sobre o próprio corpo, o espírito político de embate ("Não sou covarde, já tô pronta pro combate, Keep calm e deixa de recalque") em favor da posição social que conquistou, enfim.


(a menina Valesca, no centro, antes da fama)

Gente como esse professor engrossam cada vez mais o calibre das metralhadoras de beijinhos, e ele não é o único. Tem muita gente por ai estudando o funk carioca, mas o fenômeno ainda é "novo", vai levar muito tempo pras elites (e seus filhotinhos da classe média coxinha) deixarem de se incomodar com o ritmo do morro, que fala sim de putaria, mas também de muitas outras coisas essenciais na vida dos seres humanos. Afinal, sexo é essencial, né galera? rs. Valeu!

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