sábado, 26 de abril de 2014

Falta d'água? A culpa é SUA!

Não é fato desconhecido que os baixos níveis de chuva em algumas regiões do país afetaram o abastecimento d'água. São Paulo vive esse momento, e outras cidades da região metropolitana também, todas abastecidas pelo Sistema Cantareira, o maior dos sistemas hídricos administrados pela Sabesp. Esse sistema hoje sofre da já chamada "crise hídrica", onde o nível os reservatórios já são dos menores da história.

Reservatório em março deste ano (Jorge Araújo/FolhaPress)

Dadas as circunstâncias, é óbvio que o poder público se mobiliza pra pelo menos "fazer alguma coisa" em relação ao problema. O primeiro passo sempre são as campanhas para economia de água, vinculadas na TV, rádio e mídias em geral, sempre enfatizando que é responsabilidade de todos o "bom uso" da água e o não desperdício do recurso. Até ai, perfeito, os governos fazem bem (nada além da sua obrigação). Os problemas maiores surgem depois, quando o discurso de "você é responsável" ultrapassa o nível das responsabilidades cidadãs, individuais, e atinge um nível social superior, onde a própria sociedade comum, os cidadãos, os moradores da metrópole, pagam o pato.

Pelo menos é esse o desfecho que parece estar próximo pra situação de São Paulo e região. O tucano governador do estado já anunciou que quem utilizar 20% a mais de água que a média, a partir do mês que vem, pagará 30% a mais na conta. Claro, não deixa de ser uma excelente ideia, economia nunca é demais, mas é justamente isso que me deixou encafifado (adoro essa palavra) e me levou a escrever sobre o assunto.

Antes de mais nada, alguns dados pra abrir a mente:

Nosso país tem uma das maiores reservas de água doce do mundo (alguns dizem que é de fato a maior), concentrando cerca de 12% do total mundial, graças a grandes "mares" subterrâneos como o Aquífero Guarani, a maior reserva subterrânea do mundo. Claro que só uma porcentagem dessa água é potável, ou seja, própria para uso humano e animal (a porcentagem mundial estimada é de 0,02%). Porém, já estamos numa situação bem melhor que a maioria dos outros países, pelo menos em questão de quantidade. Isso já desmistifica, pelo menos em partes, a profecia da "falta d'água", visto que sim, nós brasileiros ainda temos muita água, porém, os grandes problemas estão na poluição, na distribuição e na utilização indevida.

Em estudo recente da SOS Mata Atlântica, constatou-se que 68% da água doce e potável do país é no mínimo regular, 26% é ruim e 4% péssima. E os principais agentes dessa poluição variam em proporção de acordo com a região. Na região metropolitana de São Paulo, onde a população urbana é maior, os agentes de poluição são basicamente domésticos (esgoto e lixo), diferente de regiões menos populosas, onde indústrias e agricultura são os maiores responsáveis.

Depois tem a questão da distribuição, cada parte do Brasil tem uma quantidade de água disponível. A região que detém mais água no país é a Norte (por quê será, né?) e a que menos possui é a Nordeste (novidade...). O sudeste detém apenas 6% da água própria pra uso no país. De toda essa água, nós, cidadãos comuns, moradores da cidade e do campo, somos responsáveis por apenas 10% do consumo. Outros 20% são usados pela indústria e 70% pela agricultura. Um certo cientista holandês ousa dizer que a agricultura usa 92% da água doce do mundo. Nosso país segue quase a risca os índices internacionais, porém aqui, o volume utilizado pela agricultura chega a 72%.

E por fim tem o uso indevido, o desperdício, a falta de planejamento, enfim. Erros estruturais no sistema de tratamento e abastecimento levam a perdas de até 42% da água tratada no país. Um estudo da ONU mostra que até 60% da água utilizada pela agricultura é perdida por fenômenos como a evaporação. Existe um trabalho muito interessante que estuda o desperdício da água na agricultura de um pesquisador chamado Aldo Rebouças, que você pode ler aqui. Nele, Rebouças mostra que até em cidades do Norte, onde a água é extremamente mais abundante, ainda sim falta água.

Como pode isso, minha gente?

Depois de reunir esses dados, vem as perguntas, claro:

Se afinal a disponibilidade de água engloba tantos fatores, por que focar a responsabilidade no consumo doméstico? Por que você e eu devemos responder por uma enorme rede de distribuição e utilização de recursos hídricos se existem outros agentes que fazem parte dessa rede?

Onde estão as políticas públicas efetivas que antes de mais nada devem cobrar das empresas e fazendeiros que sua produção seja o mínimo poluente possível? Que trabalhe para melhorar o saneamento e o tratamento de esgoto doméstico? Onde está a responsabilidade das próprias empresas e fazendas em desenvolver suas práticas de redução de poluentes? Quer dizer que nós somos responsáveis pelo uso da água e eles não?

Onde estão as obras e o planejamento para distribuição da água no país como um todo? Por que a transposição do São Francisco demora tanto e parece tão "duvidosa"? Será que o país não é capaz de redistribuir toda a água potável do seu território de forma igual? Onde estão as políticas de descentralização econômica, que incentivariam a distribuição da população por todo o território, diminuindo a densidade nas regiões "mais ricas"? Cadê o tão antigo sonho de desenvolvimento da região Norte? Até quando São Paulo vai ser vítima de uma processo brutal de povoamento desordenado e especulação imobiliária? Isso também tem a ver com distribuição e escassez de água.

E por último, e mais importante, qual a verdadeira vantagem de diminuirmos 5 minutos de banho em casa quando usamos apenas um décimo da água disponível?



Se pensarmos um pouco, veremos que a lógica do "você é o responsável" está valendo pra nós, cidadãos comuns, e pelo jeito não vale para a indústria e agricultura. Ou melhor, "vale menos". Por exemplo, um banho de 15 minutos gasta em média 45 litros de água, já para produzir apenas um quilo de arroz gastam-se 1500 litros. Isso sem contar que essa mesma agricultura usa agrotóxicos que poluem os lençóis freáticos, e a indústria que processa e embala esse arroz gasta mais água pra tal. E pior, ambos desperdiçam parte do que produzem. Apesar de sermos o quarto país do mundo em produção de alimentos, perdemos 20% deles na colheita, 8% na logística e 15% no processamento industrial. Isso sem falar na produção em massa de bens de consumo que vão, direta ou indiretamente, pro lixo. Ou seja, empresas, fazendas e governo são os maiores responsáveis pelo consumo e desperdício de água e de tudo que se produz com ela. O governo tem responsabilidade dupla, de cobrar a iniciativa privada para reduzir o uso e o desperdício e ainda de planejar e construir obras com o mesmo fim.

É, minha gente, mas não é bem isso que governos e muita gente pensa. Mais uma vez a lógica da culpabilização dos indivíduos impera e as grandes instituições são poupadas de cumprir com suas responsabilidades. Mesmo depois de grandes adventos legislativos sobre a água, que consideram a mesma como recurso básico para sobrevivência, propriedade pública e direito de todos, parece que a política brasileira não acordou pra esse fato. Nem mesmo no âmbito internacional esses discursos pró-água parecem funcionar, tanto que tem gente querendo "privatizar" a água, com o argumento de poder controlar seu consumo e inibir o desperdício. Ah tá! rs

Infelizmente encontrei pouca coisa sendo feita nesse sentido. Algumas empresas (como a Unilever) mantém políticas de desenvolvimento do uso da água, pelo menos no papel. Outras instituições públicas e privadas, como o Sebrae, fazem trabalhos para conscientizar o uso da água pelas empresas. Infelizmente essas iniciativas tem pouca expressão no todo do problema. Você já viu ou ouviu alguma campanha incentivando as empresas e fazendas a consumir menos água, na TV, rádio ou internet? Pois é. O consumo da água (em São Paulo, Brasil e no mundo) está estritamente vinculado aos interesses financeiros dos grandes capitalistas (como tudo que funciona nesse mundo, né), e através dos seus cupinchas do Estado e da imprensa, seus interesses prevalecem e sua responsabilidade é ignorada. É mais fácil culpar os milhões e milhões de cidadãos comuns, que nas suas individualidades geralmente defendem-se cegamente, culpando-se uns aos outros ("Eu economizo. A culpa não é minha"), como causadores do desperdício e da escassez. É o mesmo caso das críticas rasas à corrupção política: apontam-se os corruptos, mas não os corruptores; empresas e seus representantes quase sempre saem ilesos.

Claro que tomar um banho mais curto é excelente, todos deveríamos fazer isso, mas devemos também ter consciência de que o futuro da água não depende só disso, depende principalmente de um olhar amplo sobre o tema, de uma responsabilidade universal para com ela, de governos que saibam cuidar dela e de atores privados que invistam em redução de recursos e contra o desperdício. Até quando nós seremos os grandes vilões dos grande problemas sociais e ecológicos? Até quando os latifúndios e as fábricas terão mais direito a água do que você e eu?


sexta-feira, 25 de abril de 2014

Uma nação de pensantes

Por Ludmila R. Carvalho

   O início da copa do mundo está próximo. Mas, o que mais tem me instigado a curiosidade e a ansiedade pelo evento não é a disputa esportiva, e sim, um fato científico inédito.
   Imaginem a cena: Brasil, uma potência em desenvolvimento sediando a copa de 2014, o chute inicial é dado por um(a) tetraplégico(a) que, por meio de equipamentos de alta tecnologia é capaz de mover-se de forma autônoma, com a utilização de um exoesqueleto apenas comandado diretamente pelo seu cérebro. Agora imaginem que tal tecnologia, tão avançada que parece ter saído de um filme de ficção científica, é real, e mais, estudada, desenvolvida e produzida por esse mesmo país em desenvolvimento.
  O sonho do neurocientista Miguel Nicolelis pode não estar mais tão distante de se tornar realidade. No sertão do Rio Grande do Norte ele vem implementando um polo de desenvolvimento e tecnologia para  estudos do cérebro. Mas não só isso, também é um complexo educacional para crianças e jovens da região.
   Assim, nomes como o de Suzana Herculano-Houzel e de Nicolelis, entre outros, vem sendo reconhecidos e citados no exterior. São pesquisadores, cientistas, empreendedores, que acreditam no potencial humano, no poder da ciência, e que o desenvolvimento de um país se faz com cabeças pensantes.
   Nossa nação tem pouco mais de 500 anos de história, o que é muito recente em relação às potências do chamado Velho Mundo, nossas referências. São majoritariamente Europeus os nomes quem citamos constantemente (sejam filósofos, pensadores, cientistas, educadores, literatas, etc) ou então Norteamericanos. Nações que pensam, ou pensaram, enquanto a nós cabia apenas reproduzirmos a história de colônia de exploração, assumindo apenas um papel na divisão capitalista do trabalho , fornecendo mão-de-obra e matéria prima.
   Porém, o jogo parece estar virando. Estamos largando na frente em relação à várias questões, entre pesquisa, inovação, tecnologia e desenvolvimento, como pode bem ilustrar o exemplo da neurociência e de nossos neurocientistas. Parece que finalmente estamos entendendo que, como disse Gianotti: "O importante da educação não é apenas formar um mercado de trabalho, mas formar uma nação capaz de pensar"

Para saber mais do projeto de Nicolelis, clique AQUI e AQUI

sexta-feira, 11 de abril de 2014

A guerra dos Recalcados

Pra iniciar minha participação no blog, eu quero comentar o caso "Valesca Cabeçuda", sei que já fazem uns dias, mas o debate continua em fogo aberto nas redes, nas rodas de brejas, e afins.


Acho que a primeiro coisa a ser observada aí é a ação do meio sobre o fato. Nossa queridíssima imprensa não perde uma única oportunidade de capturar a atenção do grande público. Foi um prato cheio, né? E o tal professor que fez a questão comentou num vídeo que praticamente a intenção era essa mesmo, gerar polêmica, fazer barulho. O professor eu comento depois. No mais, não tem nada de novo nessa abordagem midiática, até a tática é a mesma, chamadas curtas, de alto impacto, às vezes com o texto dá a entender uma coisa, mas a matéria diz outra, enfim, aqueles velhos vícios que nunca foram eliminados da imprensa no geral (não é só Brasil não, viu, coxinha?).

Segundo, tem a imagem da Valesca Popozuda que está construída no imaginário dos públicos das redes. Um olhar minimamente detalhado revela coisas interessantes. Apesar de adorada por uma parcela bem específica do público (no geral, distintos das classes médias urbanas), outra parcela geralmente associa a funkstar a "música ruim", "música pobre", "não é música", "putaria", "palavrões", "obscenidade", "modinha", "lixo", "bosta", "vadia", "puta", e daí pra baixo. O interessante é que as críticas na sua maioria, além de negativas, são extremamente taxativas, a pessoa só sabe adjetivar, julgar, classificar, tudo se resume a más qualidades, não existem argumentos, não existem porquês, não há motivos, só "é assim, é assado, e pronto". Quando alguma faísca de argumentação acende, geralmente cai nesses mesmos adjetivos negativos pra justificar as posições frágeis em que se sustentam esses argumentos. Por exemplo, "o funk é ruim porque não é intelectual", essa é bem comum, geralmente tem várias derivações, vários exemplos são usados pra ilustrar essa confirmação ("ah, o Led Zeppelin falava da vida, dos sentimentos, de política!", mas também falava de sexo, drogas e muito rock'n'roll).


Depois, o embate. Ai é porrada pra todo o lado. Os anti-Valesca atacam com canhões de senso comum, tanques de tradicionalismo e perigosas bombas de preconceito. A estratégia é clara, perseguir e derrubar o inimigo com rajadas de argumentações, fotos, vídeos, e tudo mais que estiver disponível nesse grande arsenal da internet. Os pró-Valesca contra-atacam com metralhadoras de beijinhos no ombo, que na verdade são sua únicas grandes armas. O Facebook fica devastado. As rodas de breja fervem. O carro com som alto tocando funk no último volume acaba de passar. Vocês já sabem quem vence essa batalha, certo?

No fim, o que sobra é "a mesma velha opinião formada sobre tudo". E é nesse embate infinito que seguem os grupos sociais. Nesse mesmo embate nasceu o samba, o blues, o jazz, que sofreram ataques das elites dos seus respectivos países, não muito diferentes dos que o funk recebe hoje. O fato é que sempre foi assim, as putarias sempre estiveram presentes na arte no geral (popular e erudita). Me lembro sempre de uma marchinha de carnaval dos anos 20, cheia de ambiguidades bem cristãs:

"Homens: Na minha casa não racha lenha
Mulheres: Na minha racha, na minha racha
Homens: Na minha casa não falta água

Mulheres: Na minha abunda, na minha abunda
Mulheres: Na minha casa não se pica fumo
Homens: Na minha pica, na minha pica"


Esse é som um de muitos exemplos, acho que o mais antigo que eu conheço. O próprio cenário de bandas nacionais produziu diversas bandas que adoravam uma boa sacanagem nas suas letras. E, estranhamente, muitas dessas bandas são adoradas pela galera anti-Valesca. Vai entender...

Agora, no centro de tudo, está esse professor, que teve a coragem/audácia de levantar esse questionamento todo sobre o que é de fato ser intelectual, e o que isso tem a ver com a música a arte. No fundo, a arte não precisa ser intelectual, precisa ser uma expressão verdadeira, sincera, somente. A intelectualidade é uma das facetas da arte, e mais importante que isso é a intelectualidade que se pode produzir a partir dela. Por mais simples e banal que pareça a mensagem da Popozuda, se bem observado o contexto em que ela está (Quem É de fato a Valesca? De onde veio? Qual sua história?) percebe-se que não é tão simples assim. E por mais que a mensagem seja simples, o que ela evoca é bem maior: a sexualidade feminina, o poder sobre o próprio corpo, o espírito político de embate ("Não sou covarde, já tô pronta pro combate, Keep calm e deixa de recalque") em favor da posição social que conquistou, enfim.


(a menina Valesca, no centro, antes da fama)

Gente como esse professor engrossam cada vez mais o calibre das metralhadoras de beijinhos, e ele não é o único. Tem muita gente por ai estudando o funk carioca, mas o fenômeno ainda é "novo", vai levar muito tempo pras elites (e seus filhotinhos da classe média coxinha) deixarem de se incomodar com o ritmo do morro, que fala sim de putaria, mas também de muitas outras coisas essenciais na vida dos seres humanos. Afinal, sexo é essencial, né galera? rs. Valeu!